quinta-feira, 30 de julho de 2009

Velho menino rabugento

Ele tem sorriso tímido e ares distantes. Olhos que não encaram e se escondem nos óculos. Aquele ar blasé, que cerca os artistas. Uma carranca que às vezes, quando escapa o feliz, parece ensaiada.
Rabugento, é especialista em afugentar os bobos.
Refinado, consegue aproximar as almas delicadas.
Sempre foi muito difícil chegar perto, mas a moça gosta de mistério, e o dele, ela não tinha como negar, era encantador.


Bayati, Orquestra Popular de Câmara.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Domingo

“Asas vadias sobrevoando a tardinha”. Era assim o pensamento depois de um dia angustiante. Enquanto ele ironizava suas letras, com as mãos ensaboadas da louça do almoço, ela desistia de ficar brava. Riu das diferenças.

O Corinthians jogava na tv da sala. Ela, frente a sua tela nua, sentia o cheiro da chuva que caia. Olhou para os cds e deixou o Chico cantar. Pensou se um dia a alma daquele homem fora presa. Não chegou à resposta. Teve apenas a certeza que ela já fora angustiada. Lembrou-se de um de seus próprios textos. Notou que a pena sempre lhe foi cara em momentos insones, em instantes de treva. Hoje não era um desses. Era uma simples tarde chuvosa. Vazia e bonita, como em todos os dias de chuva clara.

O piano de “A ostra e o Vento” inundou sua alma. Teve a certeza de que seria eternamente melancólica e livre. “Deixe-me caminhar ao vento”. Graciosamente gris, serenamente livre “carregando o vento”.

20/03/05



A Ostra e o Vento, Chico Buarque.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Narizinho

As duas adormeciam sempre abraçadas. Esfregavam levemente o nariz um no outro até o sono chegar. A pequena não gostava de cobertor. Por isso, mesmo em dias quentes, era obrigada a dormir vestida. Preocupações da jovem/velha mãe. Depois que o sono se instalava plenamente na cama grande, cada uma virava para o seu lado.

No leve breu, depois que os braçinhos já haviam descansado, a voz infantil disse: “Mamãe, quero deitar desse lado”. A mãe virou-se para ela, abraçou-a, beijou-lhe a testa e fez narizinho. “Te amo, meu amor. Mamãe está aqui”, disse baixinho. Ela, com os olhinhos fechados, só acenou um “sim” com a cabeça. Naquela noite permaneceram abraçadas até o amanhecer.


Luísa, Chico Buarque e Francis Hime.

Metade

Metade. Sempre metade.
Nunca cheia. Nunca vazia.
Nunca totalmente feliz. Nunca totalmente triste.
Assim era a vida a seus olhos realistas. Há tempos desistiu de buscar o todo. Fartava-se de vida, aproveitando o saldo positivo. Treinava o espírito a olhar sempre para a metade cheia. Levava seu sorriso embebido no líquido que brindava o bom.
Aprendeu a sempre sorrir, no instante em que seu coração conheceu a dor.


Copo Vazio, Chico Buarque.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Telefonema

Esse sempre foi o seu sonho, desde o instante em que viu aqueles olhos pela primeira vez. Uma sensação estranha que há muito não sentia. Uma meninice e inocência que a vida já havia levado junto aos dias difíceis. Naquela tarde muita coisa renasceu. Descobriu semanas depois que era tudo faz-de-conta. Olhou para realidade. Olhou para o seu coração. Não tinha mais como fugir. Correu o risco. Aprendeu a ser feliz em pequenos instantes.

Naquela noite a campainha tocou, sem aviso prévio. Era ele. O olhar estava perdido. O semblante triste. O vermelho do rosto mostrava que havia chorado. Ele não precisou dizer nada. Ela lhe abraçou e disse: “Estou aqui”. Entrou e vestiu o casaco, enquanto ele fumava quieto no carro. Rumaram para o lugar de sempre. Beberam em silêncio. Ele chorou. Ela sabia como seria difícil. Segurou sua mão.

Passaram, pela primeira vez, a noite juntos. Não fizeram amor. Ela velou seu sono e acarinhou seus cabelos até ele conseguir dormir. Percebeu que, mesmo involuntariamente, seus corpos tinham o encaixe feito para dormir a eternidade de conchinha. Acordaram e tomaram café juntos na padaria. Compraram o jornal de imóveis. Desfizeram a mala no hotel barato. Pegaram o carro. Foram ver o mar. A brisa soprou.

O sonho foi ganhando algumas cores de leve. Seria preciso uma casa com três quartos e quintal. Ele, sem acreditar nos planos de outrora, perguntou: “Uma parede para rabiscos, histórias em quadrinhos e a tabela do campeonato?”. Ela sorriu. Duas cervejas. O telefone tocou. Ele atendeu e seu coração gelou. Tentou se conter. Não sorriu de imediato, mas o brilho nos seus olhos denunciou. Do outro lado a voz conhecida dizia: “Volta pra casa. Estamos te esperando”. Ele não precisou dizer nada. Voltaram para cidade quase mudos. Algumas lágrimas dela. Na porta de casa, um abraço. “Desculpe-me”, foi a única coisa que ele conseguiu dizer. Naquela noite, ela saiu pra dançar.


Olha, Chico Buarque e Erasmo Carlos.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Espera

Sente que não.
Grito que sim.
Enlouquece. Disfarça. Descansa. Reflete. Consome-se.
Estou a te esperar.

13/02/04


Concrete Jungle, CéU

Sedutor

Um sedutor, com gosto de chocolate ou bolo de nozes.
Sorriso largo, daqueles que preenchem o mundo.
Um sedutor, de perfume doce e debochado a acalentar a noite.

15/01/07


Malemolência, CéU

Pra você

O escuro dos teus olhos, o breu do seu coração, instigam-me a te desvendar.
O meu mistério favorito. Um bom motivo pro amanhecer.
Tudo poderia ser simples, meu mistério.

Hoje, 25/10/02.


Sambajapa, Curumim

Prenúncio

Tempos olhando. Um filme na mente antes do encontro. Para ele, ela soava apenas como um poste risonho, de tão tímida que ficava na sua presença. Para ela, ele sempre fora distante, misterioso, apesar do riso fácil, e fascinante demais.
Seu prato preferido. A especialidade dela.
Sua bebida corriqueira. A que ela se dispunha a beber.
Seu momento preferido. O que ele não cansava de olhar.
Voltou sorrindo naquela noite.

Tati Marchesan
18/03/04


O Homem da Gravata Florida, Nação Zumbi.

Calafrios Adolescentes

- Ei... Quer tremores?
- O que?
- Calafrios adolescentes.
- Como assim?
- Os calafrios que meu crioulo não pode notar.
- Você tá maluca?
- Pode ser, mas não importa. Quer calafrios?
- Não posso.
- Pode sim.
- ...
- Preciso dispensá-los, antes que ele os note. Antes que eles o façam correr.
- Ele não tem calafrios?
- Não sei, mas sei que não são os meus. Leva isso de mim. Eles já me saltam pelos olhos. Pelos poros.
- Isso não é bom?
- Poderia ser, mas não é. Não vai querer?
- Não posso... Não consigo mais.
- Acho que ele também não. Vou ao bar tentar trocá-los por uma dose qualquer.
- Pobre moça louca.

Tati Marchesan
01/04/04



Por que é Proibido Pisar na Grama, Jorge Ben

Libido

Ela já ficava desconcertada. Apesar de discreto, o olhar dele era certeiro. Beirava a indecência. Acompanhada do amigo, não sabia mais onde esconder-se. Depois da terceira dose, já não tinha mais certeza se queria fugir. A situação parecia instigar mais o olhar libidinoso. Sem saber para onde mirar, resolveu ir ao banheiro. Sentiu-se acompanhada. Sem pedir permissão, ele logo a pegou firme pela cintura. Uma dança disfarçada no meio da multidão. Não disseram nada, mas o ar pesava. As pernas ficaram moles. Antes que ela corresse para o banheiro, por inúmeros motivos, ele lhe falou ao ouvido: “Te espero. Dá um jeito”. Ela não respondeu.

Voltou rapidamente para seu par, que esperava pacientemente na mesa. Sem falar muito, deu-lhe um beijo de mulher-dama. Foram embora. Ele teve a sua melhor noite. Pobre homem, mal sabe que toda volúpia foi dedicada ao intenso desconhecido.


Logo Agora, Jorge Aragão e Emílio Santiago.

Algo pra ti

Pensei em algo pra ti.
Não consigo escrever algo pra ti.
Simplesmente, porque, o que eu sinto é sublime demais.
Acredite. É tudo por ti.

Tati Marchesan
09/09/04
No trabalho as 19h00 horas lembrando do seu sorriso. Ainda sou capaz de sentir suas mãos nos meus ombros.


Encontro das Águas, Jorge Aragão e Jorge Vercilo

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A moça dos olhos

Ela estava louca para casar. Sentia-se pronta. Tinindo. No começo achava que isso era fruto da sua criação conservadora, mesmo sendo ela uma artista de espírito livre e vida moderna. Depois passou a observar-se melhor. Fez análise. Encanou que tudo isso era a crise dos 30 anos, aquela que, toda mulher solteira, em algum momento, sabia que enfrentaria. Por fim, começou a notar que estava mesmo era cansada da solidão. Queria cantar em dueto. Queria um par para dividir.

Bonita que só vendo, não era difícil encontrar companhia, mas sua ansiedade parecia transparecer. Os romances não passavam do segundo encontro. Em meio à desilusão, que lentamente apagava o seu brilho, chegou a pensar em aceitar qualquer pretendente disposto a lhe preencheria o vazio. Tudo isso até ligar o computador naquela tarde. Ao olhar para tela, reconheceu que não havia espaço. Todo seu peito era cheio de um amor gigante que sempre teve endereço. Leu, sem acreditar. “Quer casar comigo?” ele dizia.

Morreu e reviveu feliz naquele segundo. Os olhos grandes voltaram a brilhar depois daquele instante.


Os Outros, Kid Abelha

terça-feira, 21 de julho de 2009

Amor de Orum

A casa era desconhecida, mas o sentimento era de paz. Como se entrasse em um lar que fora sempre seu. O silêncio parecia ter esperado por ela uma eternidade. O espaço que espontaneamente ocupou, sentada no chão frente à janela que dava para rua, tinham o seu tamanho exato. Passou horas a olhar o sol se pôr. A noite cair. Percebeu a delicadeza do pássaro gordo, que todas as manhãs pousava na árvore robusta que fazia sombra a frente da calçada. Era o gordão, carinhosamente apelidado por eles.

Nas manhãs de domingo, iam comprar ramos de eucalipto e flores para as moças da casa. Oxum e Yemanjá abençoavam o lar do velho menino. Orumilá reinava absoluto no branco das sextas. Omolu limpava o espírito às quartas. E o lugar tinha sempre o cheiro bom das ervas.

A varanda era o espaço das plantas e todas tinham um “dono”. Ela aprendia todos os dias com ele. Ele aprendia a leveza de um sorriso com ela. Passeavam de mãos dadas por ruas, simplesmente, olhando a delicadeza da natureza e a benção dos Orixás, como a rosa sem espinhos que ele roubou para lhe presentear.

Dormiam nus e agarrados. Aos domingos, ou nos dias que sentiam vontade, faziam passeios à livraria. Ele falava sobre os livros e os filmes da sua vida. Depois um cinema e as intermináveis conversas regadas a algumas garrafas.

A gentileza de docinhos, quando ia encontrá-la depois do trabalho. A felicidade de voltar juntos para casa. Preparar o jantar. Ouvir um bolero. Dançar na sala, com a janela aberta. Fazer amor. Ele sempre acordando primeiro. Um beijo para despertá-la devagar, respeitando o tempo da sua preguiça. Preparar seu chá amargo, que tomava em jejum, enquanto assistia o jornal da manhã.

Ela levantava para vê-lo sair. Ia para o banho demorado. Ensaboava-se, ouvindo os discos do seu homem. Saia com uma cópia da chave e rumava para o trabalho, sentindo o ar bom da manhã. A vida era simples e tão em paz, no coração dos dois, que parecia ser sonho. Depois da primeira separação, um reencontro. Uma chuva caiu repentinamente em meio a tarde de sol ameno. Ele, com a beleza da sua sabedoria de velho Ifá, lhe disse: “É Oxum, usando as suas artimanhas para selar o amor”.


Oxum, Maria Bethania.

Meio cheio

Preferia olhar a vida sempre como um copo meio cheio, nunca meio vazio. Em dias de briga, ela simplesmente se escondia e esperava tudo acalmar. Voltava de mansinho e fingia que nada havia acontecido. Os tempos foram tão difíceis, que o que restava de alegria eram os seus próprios olhos. Aqueles mesmos espertos meninos, cheios de sono e brilho, que acordavam a mãe aos fins de semana. Velhos companheiros da boca que, em riso inocente, gritava: “Corre mamãe, vem ver! Um dia lindo!” enquanto o sol brilhava no quintal.


Menina Amanhã de Manhã, Mônica Salmaso.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Duas

Espreguiçava-se como uma gata. Levava a noite também como uma gata mambembe. A noite anterior fora longa. Várias doses. Dança paga. Amor pago. No caminho noturno que escolheu, a manha felina era fundamental e diferencial. Banho de lambida...
Levantou-se direto pro chuveiro. Já era dia. Nova máscara. Nova roupa. Nova vida. Pegou seus livros e foi para aula.


Samba e Amor, Marisa Monte

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O Homem. O menino.

Ele era peça rara. Despertava paixão e ódio. Uma daquelas pessoas que são sempre vermelho, nunca bege. Bom de briga, não fugia. Mas depois de certa idade já não procurava, o que era um sinal do tempo. Sua cabeça era sempre cheia de sonhos, mas nem mesmo ele sabia disso. Achava que era molecagem. Adorava a escola por conta dos amigos e em especial das “amigas”. De tão inteligente, se fingia de burro. Sua curiosidade aguçada era a maior prova do seu talento pra qualquer coisa que quisesse de verdade fazer. Ia pro samba, mas nasceu de pé torto. Um dia tentou dançar e derrubou a dama no salão. A única coisa que ganhou foi um tapa na cara e a risada dos amigos. Gostava mesmo das músicas que transitavam entre o rock e o rap, mas pra ficar com a galera encarava a batucada. As vezes ficava sozinho na varanda da casa. Enquanto todo mundo dormia ele ainda tentava descobrir o que havia sobrado do seu céu inquieto de menino.


O que sobrou do céu, O Rappa

Instinto

Bocas,
línguas,
dentes,
pêlos.
Cabelos a misturar num suor de êxtase.

Tatiane Marchesan
17/10/2000


Vem Menina, Curumim

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Atitude

A nega era prosa. Sabe mulherão que tem consciência que é gostosa? Pois é, ela era dessas. Nem precisava alguém dizer, até porque ela fingia que não percebia que era tudo isso. Chegava fingindo ignorar os olhares que despertava. Soltava seu riso fácil e espalhava simpatia pra todos que chegavam perto, mas de longe, sorrateira, filmava tudo.

Encontrou o negrinho do canto. Cara de bobo. Bonzinho que só vendo. Todos os malandros e valentes do samba arrastando o bonde por ela, e o negrinho de óculos tomando sua cerveja discreta no balcão. Nem de longe ele imaginou aquela preta na sua. Enquanto isso, ela já tinha seguido a rota nos seus pensamentos.

Pediu uma cerveja ao seu lado no bar. Com uma mistura inocência e indecência encheu o copo do pretinho, que admirou a sua ousadia. Tomou um gole no mesmo copo do preto e disse no pé do seu ouvido, aproveitando pra sentir o cheiro da sua pele, “isso é pra descobrir o seu gosto”. Deu um sorriso e saiu.

Foi para perto da roda e sambou. Ele sabia que era pra ele. A noite acabou bem. Os dias também. O pretinho com cara de otário fez da preta sua primeira-dama. Mostrou pro samba inteiro a malandragem de entender os sinais do amor. Depois daquela tarde, ela nunca mais bebeu em outro copo que não fosse o do seu homem. Toda bebida do mundo, para eles, agora tinha o gosto bom dos dois.


Xequeré, Quintento em Branco e Preto

O Casal

Só ele sabia o quanto ela era brava, mas só ela sabia o quanto ele tinha o coração bom. Cada final de discussão a mesma liturgia. Algumas mensagens e depois a ligação derradeira, com os dois pedindo desculpas, admitindo que tinham exagerado. Ele soltando aquele sorrisinho de canto de boca, ainda marrudo, mas que ela já reconhecia como o código que afirmava quando estava tudo bem.
Quando iam pra roda de samba, ele sempre fazia propaganda dos dotes de cantora da mulher. Ela, tímida, cedia aos pedidos, sentava e ali se fartava de cantar. Esquecia da hora de ir embora. Distribuía sorrisos e simpatia. Ele, por sua vez, fica todo orgulhoso no começo, mas ao final já estava todo bravo. Tomado de ciúme, repetia que ela não tinha limite. “Você é foda” essa era sempre a sua frase no fim da noite. Ela dava risada da sua braveza.
Esse era o jeito deles. Essa era a felicidade plena construída dos momentos em que o prazer era um só.


O Samba é Meu Dom, Fabiana Cozza

08/07/09