sábado, 16 de abril de 2011

Da solidão pariu seu amor

Ela estava diferente.
Um estado não tão novo, porém desconhecido.
Seus sonhos tinham caminhos estranhos, apesar de bonitos.
Sempre rumavam a ele para sorrir-lhe.
Ele zombava, porém flertava com o novo.
Ele fingia estar de passagem.
Ela fingia acreditar.

Nos dias cheios, o mundo desapercebia os sintomas.
Nos dias vazios, a semente ia crescendo.
No silêncio o embrião ganhava centímetros, peso, feições.
Em hiatos ela acariciava o seu ventre cheio de algo que ainda não sabia.
Sentia, tremulante, que iria parir solidão.

Com o nada passava a entender a fortaleza do tudo.
Da ausência crescia a presença.
Do diferente o semelhante.
Da terra infértil os frutos mais doces.

Sem perceber, compreendia,
que do morto andava espiando a vida.
A vida que não a fitava nos olhos.
A vida que acostumara-se a esquivar-se do feliz.
A vida que intimidava barulhos e ímpetos.
A vida que a fecundou de manso.
A vida que gerava o gêmeo que aconchegaria o sozinho.


Infinito Particular, Marisa Monte.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um presente

As vezes os ventos passados sopram e trazem para o minuto belos presentes. Hoje ganhei um desses, totalmente inesperado.
Eu que sempre abuso das letras, hoje fui a inspiração de um textinho encantador, assim como a trilha.

Obrigada a vida que cultiva as coisas belas, mesmo depois de tantos tropeços. Aos olhos o presente que acabo de desembrulhar:

“Simplesmente te amo
Amo o seu sorriso,
amo o seu olhar,
amo o seu caminhar.

Amo seus textos,
amo o seu jeito de enxergar a vida,
amo o seu jeito de tomar cerveja.

Enfim... amo te amar.”


Aliança das Marés, Biro do Cavaco

terça-feira, 5 de abril de 2011

Outra Versão

Era tempo de festa profana. Ninguém mais conhecia o caminho de casa e cada dia a vida se fantasiava com um adereço diferente. Frenético. Tudo na mais alta voltagem.

As duas chegaram sóbrias no começo da festa. Deram uma paradinha e logo na entrada já chamaram atenção. Vamos respeitar, elas tinham quilate. Alguns moços trataram de fazer as honras da casa. Todo mundo se derretendo em sorrisos por todos os lados. Era alegria geral. Felicidade fácil e com hora marcada. Gargalhadas fluindo do prazer fugaz e descomprometido. Beijinhos descontraídos que sinalizavam vento e amizades.

Entraram rumo ao resto da festa. Logo que ela o avistou comentou: “Vamos ficar por aqui”, e ficou como quem não quer nada. Ela logo percebeu que os olhares se encontraram, que ele analisou o material e gostou do que viu. Só que o nego tinha garbo e não ia se dando assim. Ela também manteve certa pose, até porque nem mascarada conseguia ser assim “tão profana”.

Outros amigos foram chegando nas duas turmas. O grupo ganhou corpo, até que, em determinado momento, alguns começaram a trocar brincadeiras e assim formou-se uma grande roda. Nessa mistura é que começou a confusão. Como em um tabuleiro de xadrez, a posição determinava muita coisa, principalmente a estratégia de jogo. A moça, apesar de simpática, não era a mais ligeira da turma. Ele, apesar de ter gostado do material, era altivo demais pra atravessar a roda. Foi assim que a tarde seguiu.

As amigas mais ousadas, cercaram-no. O seu amigo mais próximo notou que a moça era bacana e, com isso, os fatos foram tomando rumo. O Dom. Garboso, foi para cama bêbado e sozinho. O amigo e a morena foram para outro lugar.

Depois da dita festa, eles nunca mais se viram, porém a vida é mesmo o sonoro gargalhar de Deus. Certa feita, ela teve que voltar sozinha à cidade onde tudo se deu, coisas de trabalho. Não tinha mais contato algum. Depois de um dia cheio, resolveu fazer-se bonita e ir tomar a merecida cerveja da noite. Lembrou-se do bar daqueles dias de folia e foi lá a sua primeira parada.

Ele estava do outro lado da cidade, mas como a noite pedia uma bebida resolveu afrouxar o colarinho e convidou uma doninha qualquer para uma gelada no mesmo bar da velha folia, porque a intenção era, devido a distância, não voltar para casa e dormir bem enroscado em uma cama diferente.

Chegou ao bar antes das duas mulheres. A sua convidada apareceu na sequência e lá foram pelas vias de uma conversa banal e de encantos conhecidos. Foi quando, para sua surpresa, entrou pela porta a moça de salto alto, vestido leve e pouca maquiagem, com um jeito de andar que misturava timidez, altivez e sensualidade. Tudo nela mostrava que ela não pertencia à cidade, mas mesmo assim ela não se abalou, sentou no balcão e pediu seu chopp escuro. Mexeu no celular para simular que esperava alguém, mas não havia ninguém para chegar.

Depois de um tempo, um moço bonito encostou ao seu lado e avisou que quem ela esperava não viria mais. Ela riu e respondeu, espontaneamente, que sabia disso. Começaram uma conversa amena. Lá pelo terceiro chopp ela resolveu ir ao banheiro. Quando se preparava para voltar ao seu lugar, deu de cara com o Dom. Garboso. Ele soltou um riso frouxo, a cumprimentou com um abraço e perguntou coisas banais. Ela falou sobre o que a trouxe a cidade e disse que havia saído para aproveitar a noite quente. Ele, sabiamente, perguntou se veio com o namorado. Ela só respondeu: “estou no vento”. Ele riu e disse que também. Os dois se entreolharam fingindo ignorar o que havia se formado na atmosfera. Ela voltou para companhia do novo amigo e ele para a velha conhecida, porém o mundo já estava diferente.

Ela resolveu esticar a noite. Despediu-se do amigo, trocou contatos e rumou para outro bar conhecido, foi ouvir sua cantora favorita. Olhou para o Dom e, somente, acenou de longe. Algo no ar cantarolava coisas que ela não conseguia decifrar. Caminhou sozinha para o próximo local. Lá o samba facilitava o contato e ela já não se sentia tão tímida por estar só, tudo bem que o consumo dos cinco chopps anteriores facilitavam bem a sensação.

Estava em um canto, quando fechou os olhos por segundos para sonhar com a sua música preferida, nesse momento sentiu uma mão que a envolvia pela cintura. Dom, no alto da sua segurança, deu seu sorriso meio de lado e disse ao pé do seu ouvido: “Se você reclamar eu conto seu segredo lá no microfone” brincou. Ela deu uma gargalhada só dela e ele a olhou encantado. Dali, noite a fora, beberam quantos chopps julgaram aguentar e partilharam muitos outros segredos e semelhanças. Como previsto ele não voltou para sua cama naquela noite, nem na seguinte. Só apareceu quando a moça já estava longe, dentro do avião. Quando perguntaram a ele por onde andou durante o fim de semana, ele só respondeu: tava por aí.

Agora eles tinham um segredo muito maior. Lembranças bem maiores. Temores que iam muito além do fato dele saber, sigilosamente, que ela odiava gramática e ortografia.


Tava por aí, Martnalia

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Samba mágico

Aquele dia ela esperou por ele. Esperou como de costume, mas os sinais não vieram. Trabalhou sua cota diária e seguiu a maratona rumo ao subúrbio onde moravam. A casa de vila era ajeitadinha e a vizinhança muito unida, tanto para ajudas como para conflitos.

Buscou o filho do casal, na casa da avó, e foi para casa no mesmo ritmo das passadas do seu jovem de 5 anos. Enquanto colocava o menino no chuveiro, botou o feijão no fogo. A comida cheirava longe, pois a nega era boa nisso. O pequeno já saiu do banho e entrou no pijama. Enquanto ela cozinhava, ele vasculhava a casa e, assim, as horas passavam. Quando o jantar só aguardava o tempero da salada, o menino perguntou: “Mãe, cadê o meu pai? Ele não vem?”. Ela, desconcertada, fazia dentro de si a mesma pergunta, mas simplesmente não encontrava resposta. Olhou com carinho para o filho robusto, que tinha tudo do pai, com exceção da propensão à devaneios que herdara da jovem mãe, e respondeu: “Vem sim, querido, é que hoje ele tinha muito trabalho no escritório”.

Jantaram só os dois, sem o pai. Na mesa o lugar do marido ficou vazio e o prato a sua espera. Durante a sobremesa o menino teve uma idéia. Saiu silencioso e foi para o cômodo preferido do casal, um misto de biblioteca e sala de som. Foi nisso, que com toda ingenuidade da sua alma, colocou para tocar bem alto o samba preferido do pai. Na ponta dos pés, correu para o colo da mãe e disse sorrindo: “Quem sabe, mamãe, ele escuta e volta para casa...”. Os olhos da moça encheram-se de lágrimas, mas ela deu um sorriso e acenou um sim para o filho.


Coisas do Mundo Minha Nega, Paulinho da Viola.

Na esquina, em uma vila próxima, estava o marido. Com a gravata no bolso, o colarinho aberto e o paletó pendurado em uma cadeira qualquer. Todo solto, sorridente, jogava sinuca com os parceiros e, bonito como só ele, dividia o copo com as moças que estavam no lugar. De súbito seu coração ficou apertado. Deixou uma rodada paga para os que ficavam e seguiu, trôpego, para casa. O samba ainda não havia terminado quando ouviram o cachorro fazer festa e a porta se abrir. O pequeno saiu correndo, se pendurou no pescoço do pai e, olhando para mãe, disse em segredo: “Esse samba é mágico”. Ela sorriu para sua leveza.

Enquanto os dois meninos faziam festa, ela foi para o fogão. Ele apenas a olhava com aqueles olhos sem dono, olhos daqueles que sempre voltam para a velha casa. Ela não lhe deu sorrisos. Ele foi para o banho, quando saiu seu prato estava feito e devidamente posto no lugar que, horas antes, permaneceu vazio a sua espera. O filho lhe fez companhia no jantar, enquanto ela seguiu para varanda, onde moravam em harmonia as suas plantas, Exu, Ogun e Oxossi, os donos daquele chão, e sentou-se em uma das cadeiras com o livro que fingia ler nas mãos.

Depois de tempos, o pai colocou o pequeno faceiro na cama, já que adormecera em seus braços. Ao invés de explicações, o que ela ouviu, naquela noite alta, foi outra canção mágica. Sem perceber ou pensar, ela já estava nos braços daquele que sempre seria seu, mesmo quando era inteiramente do mundo. E acompanhada das notas que flutuavam pelo ar, a paz dos dois foi sendo selada ao seu modo singular, daquela maneira que todos criticavam, mas que no fundo tantos invejavam. Sem discussões e lamentos, uma paz que ardia por todos os cantos e desfalecia extasiada naquela cama abençoada pelas yabas. Uma paixão que sobrevivia das diferenças, mas se alimentava da semelhança. Um amor que, em conjunto, aprendia a cada novo dia a magia de se viver em dueto.


Samba da Volta, Vinícius e Toquinho.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Gaivota

A tarde começava a cair. Não havia belo pôr-do-sol ou qualquer coisa iluminadamente feliz. Havia inúmeros pássaros voando, sincronizadamente, em bandos a emitir seus sons que quebravam o silêncio da solidão.

Havia mar, havia montanha, havia o verde, havia uma paz melancólica. Ela viajava no seu mundo. Pensava em asa-deltas, imaginava que aqueles pássaros foram a inspiração do homem para alçar vôo alto.

Gostaria de voar alto. Gostaria de fugir dos impropérios, da falta de cortesia, das palavras que humilham. Gostaria de fazer diferente. Voltou os seus olhos para o mar e percebeu o movimento das ondas, que sempre voltam diferentes. Fitou a mata e notou que, em cada árvore, brotava sempre um pequenino ponto novo.

Percebeu, nesse devaneio, que ela era parte da natureza. Entendeu que sempre é possível voltar diferente. Parou de pensar no que gostaria e fez o que de fato queria. Tomou as rédeas. Traçou seu rumo. Soprou vento. Alterou sua maré. Lançou novas sementes, pois sabia que na hora certa elas lhe trariam outras cores. E foi assim, de um jeito que só ela sabe sentir, que entrou dentro daquela noite sem estrelas.


Choro Negro (Paulinho da Viola) - André Mehmari & Hamilton de Holanda

Seguro

Já era dia seguinte. Ela acordou diferente, como andava diferente essa moça nos últimos dias. Olhou para o calendário. O coração apertou-se de saudade. Era um tempão para sua urgência de viver. Calculou, calculou. Fez o relógio enlouquecer e a vida dar um nó. Espremeu possibilidades. Encontrou a perfeita. Mas não havia o perfeito, pois não havia o recíproco. Não havia par. Era vontade única. Era a sua mente, os seus sentidos e o seu coração que se agitavam sozinhos em uníssono, em uma canção somente sua.

Olhou para a janela, a tarde já caia. Sentiu uma imensa saudade do que não viveu. Recolheu, sozinha, os seus sorrisos soltos que andavam passeando a esmo. Recompôs a sua órbita serena. Inseriu o seu planeta no velho ciclo. Fez isso, mesmo enquanto todo o resto do seu interior implorava para fugir no último bondinho, rumo ao pôr-do-sol, ansioso por ver o céu alaranjado e os pássaros brincando em bando próximos à montanha. Fez isso, mesmo quando todos os seus sentidos suplicavam pelo silêncio em dueto, quando seus poros pediam aquela mesma metade que adormeceu no seu ombro, enquanto ela acarinhava e velava seu sono, no meio de uma multidão.

Fez isso sem saber o certo. Fez isso sabendo o seguro.


O último pôr-do-sol - Lenine

quinta-feira, 17 de março de 2011

Fogo de Rei. Majestade de Rainha

O tempo soprava ventania, maquiava tempestade. Oxum, astuta, vestiu-se de cobre, misturou suas jóias e saiu como sua irmã. Na noite que despontava, havia festa, beleza, havia guerra de paz, havia deboche, havia sensualidade. Inhasã, apesar das desavenças com Oxum, gostou do que viu e resolveu brincar de brisa. Saíram ambas, ladeira abaixo a zombar dos olhares que não as reconheciam em um corpo só.

Misturadas traziam o melhor de cada uma: a ousadia do vento, que não pede permissão e invade todos os espaços, e a sensualidade da cachoeira reluzente, que acaricia e enfeitiça os que se deitam sob ela.

Atraindo olhares, passeavam por todos os deuses pagãos que se divertiam na festa junto aos mortais, mas ninguém as reconhecia. Elas, por sua vez, apenas sorriam de um jeito meio menina, meio mulher. Foi aí que cruzaram com três homens. Um dos mortais as parou, pensando ser uma única, elas lhe sorriram e conversaram como uma mulher qualquer, porém entre eles havia um rei. O único que já desposara as duas, aquele que perdia a cabeça por ambas e, também, o único que as dominava com sua firmeza.

Sem pedir licença, ignorando o pobre mortal, o rei lançou-lhes as palavras certas. Exalou o seu cheiro, o seu poder. A força do seu fogo que leva para o seu reino tudo o que ele deseja, que transforma, em sua, toda mulher que ele escolhe.

Quando ele tirou-lhes a máscara de cobre e sentiu o gosto das duas, fez com que elas, naquele exato momento, se fundissem pra sempre. Não era mais Oxum, não era mais Inhasã, era Opará, uma terceira deusa, nascendo para o seu Xangô, o seu rei soberano. Surgiu ali uma jovem majestosa que, de mãos dadas com o fogo, saiu a rir de um jeito só dela, exibindo sua fresca beleza misturada aos mortais.

Sem que o mundo notasse, a chama de Xangô se acendeu e lançou na festa o seu fogo, o fogo que jamais finda. Opará, sendo meio vento, meio água, apagava e tornava a acender tudo o que mais amava em seu rei.

Foi em meio a essas brasas que os dois sumiram na multidão. Nunca mais foram vistos, mas são sentidos toda vez que corpos ardem em um desejo que jamais sucumbe. É assim que Opará e Xangô vivem nessa terra de mistérios. Foi assim que eles se eternizaram.


Oxum Opará