sexta-feira, 2 de julho de 2010

Balaio, bodega e amor

- Oh, nega do balaio grande...
Esse foi o chamado provocador que ele fez , mas não cantou de qualquer jeito. Cantou olhando na bolinha do olho dela. Na frente do coro uma dezena de moças, todas bonitas e faceiras, sacudiam o pandeiro. Ela estava bem atrás, só balançando. Hipnotizada ouviu o chamado e saiu feito miss. Abriu espaço, segurou a saia, dançou balançado os cabelos e depois devolveu o olhar com malícia redobrada.

Saiu da roda e deixou as outras sambarem. O cabaré estava cheio, parecia que ia faltar trabalho. Resolveu fumar um cigarro e pensar na vida. Seu homem ia longe dali, vivendo vida de mascate trabalhador. Talvez pela senhorita distinta que ela aparentava durante o dia, ele pensava em casamento. Mas o cabaré, assim como o matrimônio, era a sua vida. Não tinha como dissociar, esse conjunto era o que dava conta dela.

Decidiu não trabalhar naquela noite. Deixou para as moça menos abastadas. Pegou seu xale e saiu a caminhar pela rua. Abriu um sorriso pensando no “tamanho do seu balaio” e decidiu parar no botequim pra beber como uma terceira mulher: aquela que simplesmente bebe, ri e canta. Colocou uma moeda na máquina e pegou o microfone: “se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim”. Começou assim, arrancando aplausos dos velhos bêbados do lugar.

Tomou um gole de conhaque e apostou em outra ficha, exatamente, quando ele entrou. Não lhe deu atenção até ele encher seu copo e pedir ao pé do ouvido: Onde anda você. Ela deu um meio sorriso, levantou sem dizer uma palavra e com o olhar de “nega do balaio grande” cantou no meio do bar, mas só pra ele.

Ele, por sua vez, em nada se parecia com o malandro que batucava no cabaré, muito menos com o mascate trabalhador que enchia de bons costumes os seus dias. Um jovem italianinho desleixado com cara de dono de bodega, assim ele era. Conhecia cada freguês daquelas paradas e chamava todos os homens, mulheres e crianças da vizinhança pelo nome. Os seus dias se dividiam entre o trabalho no botequim e a várzea. O seu coração ainda fazia morada na casa da doninha de respeito que ele havia desposado tempos atrás. Ela, tão recatada era, que não saciava os gostos e muito menos competia com o ganha-pão do esposo. Para ser feliz, a pequena resolveu voltar para casa da mãe e esperar que algum centrado advogado resolvesse cortejá-la. Assim foi que o italianinho se viu sozinho na vida, mesmo tendo em sua cama uma dama a cada noite.

Ela não sabia de nada disso, assim como ele também não sabia de onde ela vinha. Acabou a canção e , como há muitos anos, surgiu em seu rosto um sorriso que não era desafiador. Era tímido e delicado. Era uma mistura de tudo. Era a sua verdade. Encostou no balcão, ele aplaudiu baixinho, bem perto dela. Olhou-a com uns olhos diferentes e agradeceu. Hipnotizado disse, enquanto ela balbuciava centenas de palavras desconexas: “você é linda”. Ela se calou e sorriu.

Uma jovem que vinha da labuta noturna resolveu entrar. Logo que soube da fama da nega, investiu em algumas fichas e fez um pedido: canta a Noite do Meu Bem? Lá foi a moça. Colocou-se a postos e cantou de olhos fechados. Quando abriu não avistou mais ninguém, só o italianinho, que não sorria, tinha o ar daqueles que chegam para levar sua mulher embora. Segurou na sua cintura com firmeza e beijou seus lábios de leve: você é linda, linda. Você é minha. Fechou a bodega.

Criou-se um mundo naquele 3 x 4. A ternura foi se transformando em desejo. A moça cantante foi dando lugar à dona do balaio grande. Nas mesas do bar, no balcão, no chão, o italianinho teve a melhor foda da sua vida. Ela, por sua vez, teve o melhor amor do mundo. No dia que nascia ouviram ao fundo: “Quem vem lá? Que horas são? Isso não são horas coração”. Dormiram agarrados em algum canto. Acordaram antes do mundo, selaram um beijo único.

Os dois ainda vivem nas noites e nos dias que amanhecem, cada qual na imaginação do outro. Ele continua a abrir e fechar a bodega diariamente, dormindo a cada noite com uma dona diferente. Ela passa os dias como a senhorita do mascate trabalhador e as noites virando a cabeça dos homens no cabaré. Esqueceu o caminho da bodega, ambos têm medo de encontrar a terceira dona, aquela que mistura tudo. Aquela que tem os olhos, voz, lábios, cheiro e sorrisos da sua vontade.


A Noite do Meu Bem, Dolores Duran.