segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Pedra

Os olhos se voltam para dentro de si. O desprezo quase educado da noite anterior. A rejeição grosseira, impaciente e direta pela manhã. O sonho sombrio que uniu as duas pontas. Demorou demais, mas ela definhava a esperança. O sublime virava pedra. O amor estava prestes a endurecer.


Acontece, Cartola

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Regresso

Ela não mais sabia sentir ciúme e sentiu. Um daqueles de outrora. Ele roeu os seus minutos devagarinho, só como os de amor podem fazer. Foi desnecessária. Pediu desculpas. Encheu o peito de alegria quando ouviu a velha voz, ao telefone no fim do dia, perguntando se ela ainda estava brava. Conseguiu enxergar o sorriso preso no canto da boca. Aquela expressão que sempre fora só dele. A confusão tomou conta da sua alma dali em diante.


Ela Partiu, Tim Maia

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Beirut

O vício começou lendo as linhas doentes do amor de Bentinho por Capitu. No mundo contemporâneo a velha história já havia ganhado muitas trilhas, mas aquela tocou a moça de tal maneira que não mais iniciava seus dias sem escutá-la. Punha-se na sua viagem interior. Ganhava a força e a fúria capaz de matar um elefante e ao mesmo tempo a delicadeza e a piedade que impedia. Olhava as manhãs. Pensava em Bentinho, pensava em Capitu, pensava em Escobar. Tinha a certeza que a vida é singular aos olhos de quem a conta. Não existe verdade. Cada coração, cada olhar, carrega a verdade que escolheu.
Aos seus olhos Capitu era devota e fiel à Bentinho, mas sua inquietude jamais seria capaz de amar Casmurro.


Elephant Gun, Beirut (legendado)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Loteria

Estava tudo errado, tudo errado. Essa era a frase que ela sempre repetia, desde o início, e que ele aprendeu com o tempo a usar. Ela tentou ir embora muitas vezes, mas a presença dele enchia de tal forma a sua vida, que seu coração não deixava.
Ele também, muitas vezes, concordara em partir. Estava tudo errado e o melhor era cada um para um lado. Mas sem ela, mesmo que ele quisesse negar, o seu coração era só metade. Veio uma prova de fogo. A chance de ouro para cada um tomar seu rumo. Ingenuidade adolescente, o destino não traça caminhos retos.
A saudade multiplicou a falta. A falta potencializou o amor. Não dava para negar. Estava tudo certo. Começaram, de verdade, acreditar que aquilo era loteria.


Melhor pra Nós, Reinaldo e Seu Jorge.

Donald

O coração se aperta ao saber-te distante.
A ausência certa faz com que a mente não descanse.
O telefone, como um cão de guarda, sempre alerta.
Uma saudade malvada, impregnando seu cheiro em todas as frestas do universo.

Ela não se sabia tão amante da sua presença, mesmo desmaterializada.
Não demore, sua falta apaga a Margarida a conta-gotas.
Todo sorriso da moça anseia por sua chama.


Só o tempo, Paulinho da Viola e Zizi Possi

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Dama da Noite

O moço era medroso, todo católico morria de medo de qualquer espírito que não fosse o santo. A moça de casa também era assim e iam, a família unida, à missa aos domingos. A moça da rua já era cabrocha faceira. Gostava de bar, cerveja e amor até de ponta cabeça. Como era toda boa, vivia de mini-saia e às vezes descuidava dos modos de sentar. Ele não se irritava, mas fingia que sim. No fundo se deliciava. Aguçava a sua imaginação e sempre, quando voltava pro lar, ia pensando em tudo aquilo que era só seu. Só que havia um detalhe, que ambos desconheciam. A moça da rua tinha problemas com esquinas.

Naquela tarde, beberam muitas até o desejo começar saltar aos olhos, mas quando isso aconteceu o tempo já havia findado. Ele tinha que partir. A moça ficou brava e falou, falou e falou. Esqueceu-se já de esconder a calcinha vermelha que ficava sob a saia. Resolveu pegar um cigarro e sair da mesa para fumar. Foi aí que fizeram a descoberta.

Na esquina, a moça fumava e tragava o cigarro com mestria. Nesse momento, mais mulher-dama do que nunca, disse desatinos que jamais teria coragem de dizer, mesmo nos momentos mais embiritados de sua vida. O moço a levou pro carro, insistiu em irem para casa, ela relutou. Deixou-a no bar seguinte e foi embora com o coração na mão, pensando que talvez algum malandro perspicaz desse a ela, naquela noite, o que ele não pode dar.

A moça, coitada, que de mulher-dama não tinha nada, a não ser as suas brasas, dormiu logo depois. No dia seguinte não se lembrava dos ditos. Como haviam testemunhas, ela acabou acreditando. Refletiu e concluiu. “Moça faceira, ébria, fumando em esquina, é tudo o que as damas do além precisam para se saciar”.
Depois dessa, nunca mais fumou em esquinas, nem nas mais inocentes.


Boto meu povo na rua, Martinalia

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Gaviões

Talvez peregrinos rumo à Meca.
Esses vão de preto e branco, rumo ao seu próximo horizonte.

17/04/09.


Garra Corinthiana, Branca di Neve.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Providência

O pai acabara de morrer. A sábia velha/jovem mãe reuniu os seis e, com o misto de carinho e dureza que a situação imprimia, disse-lhes: “Agora vocês são os homens da casa. Nós vamos ficar juntos, unir tudo o que temos, e caminhar”. Assim passaram os primeiros tempos de luto.

Pensamentos pesavam, na mesma intensidade que os potes minguavam ao longo dos dias. Ao fim da primeira semana, a filha mais velha dirigiu-se a mãe. Com sua voz ainda infantil disse: “Mamãe fiz o último prato hoje. Não temos para amanhã”. A negra altiva não desesperou na frente da filha. Disse-lhe que tudo ficaria bem. Não dormiu. O dia amanheceu num sábado de sol. Logo pela manhã, uma visita inesperada. Todo mundo correu para ver o carro que encostou. Os três jovens, com o semblante mais inocente do mundo, vinham felizes ver a tia.

Nêgo, o sobrinho mais velho e filho da sua “dinha”, como carinhosamente chamava a madrinha, abriu seu sorriso largo e disse: “Tia, passei no mercado trouxe umas coisas”. A cesta era grande e afastou o desespero que espreitava. Um dia aquela tia lhe comprara um caderno, com a mesma inocência, quando ele, menino, já não mais tinha como estudar.


Rancho da Goiabada, de João Bosco e Aldir Blanc cantado por Elis Regina.

Perfume

Sentiu um perfume conhecido. A lembrança.
Ele era miúdo e imponente, muito diferente dos outros. Não chamava atenção pela beleza, mas a mistura de charme, inteligência e cheiro bom davam a liga necessária.

A primeira vez que o viu, recebeu um gracejo desinteressado. Na segunda, a bebida deu coragem para o bailado. A dança de estreia, o encaixe perfeito. Na saída, o cortejo. Uma mensagem. Um telefonema. Um almoço. Uma tarde. Vidros embaçados no batizado do carro novo. Flores, que brotavam somente uma vez ao ano, para comemorar o encontro.

Um enterro onde foi preciso manter a distância. O olhar aflito, no momento mais dolorido, selou o abraço da cumplicidade.
As flores do vaso nunca mais desabrocharam.


Cabide, Martinália.

05/08/2009

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Palavra

Findado Graciliano.
Sobre a alma pesa a força da palavra seca.


Vida de Vaqueiro, Gilberto Gil e Dominguinhos.
11/08/09

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Falta

Às vezes surge à falta.
Vem em momentos estranhos, insones.
Momentos de inveja de um vago semblante.
Momentos de inveja do ar que te rodeia.
Não é amor, só saudade da companhia.

Tatiane Marchesan
27/10/2000


Pois é, Elis Regina e Chico Buarque.

Nota

Algo estremeceu. Não sei dizer bem o que.
O misto de aflição e apatia, dão a nota da espera.
Gostando de jogo, tudo seria mais fácil, de Coca-Cola também.
A essa altura, já desconfio da sua presença.
Esperarei. Sinto que estou a perder-me.

Em alguma noite do mês de abril de 2004, num ônibus rumo a Paulista enquanto já desistia.
01/10/2004
Tati Marchesan


Nada Por Mim, Kid Abelha.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A cantora

O olhar devotado.
O sorriso preso na cumplicidade.
O amor sofrido. A loucura retribuída.
A alma atormentada. A intensidade. A tranqüilidade. O equilíbrio.
O bailando da eternidade.
A marca, como tatuagem.


Tatuagem, Elis Regina

Ela

Saiu pro mundo se achando prosa. Sabe como é? “Um belo dia resolvi mudar”, sentia-se assim. Caminhou e trombou num velho poste. Parou. Deu uma mijadinha. Esperou o retorno e nada veio. Fingiu não ligar. Avistou um novo poste. Deu outra mijadinha. Esperou uma conquista e nem faísca.

Alguém a avistou e deu uma mijadinha. Sentiu-se importante. No dia seguinte o poste estava meio cinza. Ela se viu refletida. Quis fugir de si. Uma penumbra. Tentou afastar as nuvens carregadas. Elegeu outra faixa do disco. Tristemente se reconheceu.
Com inércia voltou ao seu trabalho.

Tatiane Marchesan
29/01/2004


Não vale a pena, Maria Rita.

Memória

“A memória é uma ilha de edição” a voz de Wally Salomão dizia. Só frase de vitrola, mas a fez pensar. Será que é possível editar a vida? Talvez de mentirinha.
Olhou ao redor de sua alma. Sentiu-se forte.
O todo só é pleno com seus fragmentos.

18/07/2009


Tudo que você podia ser, Milton Nascimento.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Solidão em par

As coisas já não iam bem há tempos. Ela sabia disso. Ele também. A esperança de que tudo se ajeitasse, fazia com que empurrassem os dias com a barriga, como se pudessem se contentar com pouco. As brasas de vida eram latentes nos dois. As faíscas ainda acendiam quando sentiam o cheiro da pele do outro. Assim foram indo, esperando o destino. Certa hora, as brasas amornaram. Ela a cada dia se fazia mais bonita, esperando que tudo voltasse. Na rua todos a percebiam. Na sua cama, tudo era sono, só sono.

Naquela noite foi diferente. Depois da produção ela se deitou, como sempre, aflita por atenção. Reparou no marido ao lado, que, ignorando quem sempre fora o seu melhor par, preferia o prazer solitário. Ela virou-se, fingiu não perceber. Passou a noite em claro, enquanto todos dormiram. Quando acordou, arrumou suas coisas. Era o fim.


Ponto de Interrogação, Grito de Alerta, Explode Coração e mais, Gonzaguinha

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Bonito

É Bonito
Sussurra.
É bonito sussurrar.
Sussurro ti amo.

04/12/02


Eu preciso dizer que te amo, Cazuza Filme.

Dois empregos

Ele tinha dois empregos. Quem diria?
Aos seus olhos ele ainda era o mesmo adolescente esprivitado. O primeiro do bairro a lhes desejar boas-vindas, quando elas se mudaram para o lugar. Aquele que invadiu a festa de aniversário da sua irmã caçula, com o bandeirão do Corinthians, só para fazê-la feliz.

Aonde ele chegava ganhava a simpatia de todos. Na rua, mais parecia vereador, de tanto cumprimento. Hoje já era homem feito, marido de moça de família e pai de dois. A surpresa veio confessa no seu rosto baixo e desconcertado, com o dia clareando a beira do quintal bagunçado, que confirmava festa boa.

Ela, a mais velha e observadora, percebeu que a noite havia sido diferente do habitual. O ar pesava demais, coisa que nunca fora comum. Por fim, na vergonha do rosto de menino, ela decifrou a mensagem que seu coração lhe deu a noite inteira. Os olhos dele marejaram e a boca balbuciou, antes dos detalhes, “você já viu meu carro?”. Naquele instante ela entendeu tudo e sofreu. Escutou calada e só conseguiu dizer: “Aqui você é o amigo de sempre. Se cuida, porque eu não quero notícia ruim”. Deu um abraço forte e, sem sorrisos, fechou o portão.


Numa Cidade Muito Longe Daqui, Leandro Sapucahy e Marcelo D2

O Jardim

O jardim sorri.
Você sorri desajeitado.
A vida numa carta de amor.
Traz o mundo, mas não vem.
Eu e você no que é sublime.
Eu e você num sonho bom.

Tati Marchesan
Noite de 24/06/2005.


Peito Vazio, Cartola

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Um

A fantasia era só dela.
Só ela não sabia.

23/06/2009.


Trajetória, Maria Rita

Poeira

O cheiro era o da saudade. Visitou o lugar como se voltasse para casa. Dialogou com a mente, como se ele estivesse presente. Olhou para as coisas com seu velho olhar másculo, minucioso e crítico. Tornou a olhá-las com seu próprio olhar feminino e infantil. Misturou tudo na sua memória. Foi para o bar de sempre. Passou horas bebendo e dialogando com seu imaginário. Viveu o tempo como uma viúva resignada.

31/07/2009.


Suburbano Coração, Chico Buarque.

Era

Era um homem tão grande, como a balburdia do meu coração.
De mistério, como o sem fim do meu coração.

Durante a aula de direito administrativo
07/05/2007


Cais, Milton Nascimento cantado por Elis Regina.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Companheiros

A criança ia sempre no colo do jovem pai. Tão jovem de aparência, que parecia um segundo menino. Os dois usavam tênis e chapéus semelhantes e tinham uma cumplicidade que transcendia os olhos. O afago no rosto, o carinho involuntário.
O pequeno subia pelas escadas nos ombros do maior e ambos largavam um riso frouxo.
A vida tinha certeza que ali iam felizes companheiros.

31/07/2009.


O mundo é bão, Sebastião, Nando Reis e os Infernais.

Copo Americano

Todo mundo sentado calorosamente à mesa do bar. A cerveja favorita, que o garçom já traz por inércia. O número certo de tulipas ou outro copo longo qualquer. Uma pausa. Uma voz pede um copo americano e lhe entrega. Ganha um sorriso espontâneo que diz, em silêncio, "você sabe coisas de mim".


All Star, Nando Reis.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Amor Fugas

Foi instintivo.
No dia seguinte já não sentia o cheiro.

01/06/2009


Uma Tigressa, Marina de La Riva

Cuca

Cuca é um pão característico.
“Cuca, você me deixa assim...”
Era ele extasiado depois do amor de um país.


Tu me Acostrumbraste, Marina de La Riva

Metrô

Têm dias que o metrô de São Paulo nos oferece belos presentes.
Um rosto talhado com perfeição.
O dele era assim.

Metrô Paraíso, manhã de 01 de julho de 2009.



Ruas que Sonhei, Paulinho da Viola