quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

2010

A sala estava vazia. O peito ainda cheio. Não havia silêncio em lugar algum. Todo seu universo murmurava. Não mais gritava, como em tempos de mocidade. Os anos o doutrinaram e agora ele apenas emitia sons educados e silenciosos, que muitas vezes falavam só pelo olhar.

No ano corrido aprendeu a conviver com a perda. Entender que não existe poder sobre o destino. “Que a dor é vai e vem, qual onda no mar”, como diz a sua canção preferida.

Nada de mágoa remoída, uma serenidade construída à tijolos de desespero. Uma sanidade que vinha do insano.

Gostava-se mais agora. Sofria mais agora, pois o silêncio é inimigo do alívio. Notava que a cada dia todos morrem um pouco. O tempo é ouro e paciência virtude.

Não tinha do que reclamar, porém sua alma se despedia de mais um ano lindo cheia de saudades do que não viveu. Será que a vida é essa eterna saudade? Que a evolução é a resignação do que não chega? É sempre sorrir, apenas porque tudo correu bem? Finda o ano melancólica, mas lutando para fazer “do verso uma canção delicada...”, combinando assim com seu jeito sorridente de viver.


Delicada, Teresa Cristina, grávida e cheia de luz. A vida se renovando...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Tarde Pré-Verão

A tarde caiu tão bonita.
Sol frio, amigos de labuta e enterro dos fantasmas.
Samba e sorrisos para comemorar.
Bem que a Beth cantou.


Antes ele do que eu, Beth Carvalho.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Bolsa de investimentos: amor-próprio

Pegou-se “vendendo fácil o que não tinha preço”. Ela não havia percebido, mas no fim do pregão do dia anterior colocou na mesa sua última ação de amor-próprio. O pior é que vendeu na baixa. Não analisou bem o negócio. Não esperou a valorização para conseguir lucrar algo. Os analistas já mostravam que não era um bom momento: baixíssima lucratividade. Mas ela, com saldo negativo na sua conta de auto-estima, não pensou em economia e agiu como uma jogadora amadora e compulsiva apostando no seu pangaré preferido, mesmo sabendo do resultado.

Negociou e ficou ali, paradinha, aflita, torcendo para que o dinheiro se multiplicasse. Todo mundo sabe que não existe mágica. Era óbvio que ela se deu muito mal. Chegou em casa arrasada, nem mesmo conseguiu tomar o etílico duplo que alguém lhe recomendou.

Saiu do banho longo e inerte. Sentou-se a mesa e começou a folhear o balanço. Analisou o histórico da sua empresa. Percebeu que sua conta de amor-próprio sempre fora deficitária, mas como as outras contas tinham saldo muito positivo a empresa sobreviveu até ali. Com empréstimos e mais empréstimos consolidou-se, representando bem para o mercado e apresentando balancetes fraudulentos para toda economia dos sentimentos. Depois dessa baixa, não teve mais jeito, a gestora foi obrigada a encarar: déficit de amor-próprio. Sem investimentos nessa conta a empresa decretaria falecia imediata. O doloroso é que ela não tinha mais verbas para gastar.


Cair em si, Djavan

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Canção do amor demais

Passaram-se anos, vários, todos. O dono da verdadeira trilha da sua “canção do amor demais” ainda não havia chegado.
Ela esperava pacientemente, dias mais, dias menos.
Em tempo nublado sonhava na livraria, no cinema.
Em dias de sol, sonhava entre árvores, calçadas e sorrisos.
Mesmo sem causar alarde, estava sempre alerta,
tão alerta que passava dias e dias a se enganar.


Sou Você – Caetano Veloso

Café

Colocou o café na boca. Ficou estática, não engoliu a bebida que aos poucos tomou-lhe todo o espaço das gustativas, do paladar.
O gosto inundou todos os sentidos.
Congelou o tempo,
o arbítrio,
o prazer,
o olhar,
as batidas,
a vontade,
o brilho.
Mortificou o tudo.


Você não me ensinou a te esquecer - Caetano Veloso.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Travessa Tim

Essa manhã andei pela travessa Tim Maia. Fica no seu caminho, sabia?
Imaginei que você passou por ela minutos antes.
Pude ouvir sua voz resmungando: “só mais 15 minutos...”.
Vi você dormindo de bruços, daquele jeito só seu, todo esparramado e agarrado ao travesseiro.
Admirei sua tatuagem, que me olhava das suas costas.
Senti seu cheiro.
Morri um pouco quando encontrei seus olhos.


Andrea Doria – Legião Urbana

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Santa TPM

Nunca descobrir uma TPM foi tão bom. Passou a semana toda sofrendo, uma dor tão aguda que chegava a machucar o coração, e não era para tanto. Tudo bem que o moço causou sensações a muito esquecidas, mas ela não era de se entregar assim. Andava tudo muito estranho, mas nem passou pela sua cabeça as abençoadas três letrinhas mágicas.

Mil coisas surgiram: sacanagem do destino, desrespeito por parte do mocinho, sincope de rejeição, crise dos 30 e por fim a vestimenta definitiva: fantasia de idiota do aquário. Só quem já vestiu sabe como ela se sentia. Ela já havia provado o modelito aos 18 anos e por isso achou que estava imune à numeração. Nunca caia nessa, essa roupinha sempre tem numeração disponível para todos os manequins, inclusive o seu. Fique atenta. Mas lembre-se também: quem não arrisca, não petisca. Ela arriscou, só não petiscou. Melhor assim, deixou de engordar algumas graminhas, tentou rir da própria desgraça.

Mas todas as linhas acima foram simplesmente para dizer: santa TPM!
Na verdade as pontadas não eram tudo isso, apenas um desfile de formiguinhas cabisbaixas potencializado pelos hormônios.
Ufa, enfim a vida voltava ao normal, pelo menos nos próximos 28 dias.


Desculpe o auê, Rita Lee e Paula Toller

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Nada

Lento, lento, lento...
As vezes as pessoas só esquecem de avisar.


Telefone, Tim Maia

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Quem disse

A trilha do dia era outra.
O texto que chegou a tela pela manhã, trazido pela inspiração da esperança, era outro.
A tarde cai.
A trilha muda. Inusitada.
Quem disse que a vida não é inusitada. Não é mesmo poeta?


Minha - Cartola

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Coisas de mãe

Entregou seu coração no rio dela. Eram águas calmas, cristalinas de fundo reluzente. Foi nele que resplandeceu a beleza do presente que lhe sorria. Mas as águas calmas também têm correnteza, porém leve, delicada, estrategicamente colocada pela natureza no curso para manter a limpidez. Com ela o coração posto foi deslocando-se calmamente, passo a passo, no rumo que Oxum queria e determinava.

Mamãe mirava no seu olho, como que dizendo: confie em mim. O coração rolou cachoeira abaixo. Oxossi, o dono de tudo naquele planeta, quando viu aquilo, soltou o seu ilá no meio da mata e veio buscar. Já avançava rio a dentro para apanhá-lo, quando a esposa segurou sua mão delicadamente, porém com a firmeza que só as mães têm. Ficou muda, mas seus olhos diziam: “Deixa... Confie no amor... Não vamos deixá-la se esconder no mato dessa vez”.

Pela manhã, a filha, que já acordou determinada a correr para sua selva moderna, permaneceu impassível, forte, altiva e independente, tal como o pai. Ao chegar no seu destino, a primeira coisa que fez foi escutar sua mãe cantar. Resolveu escrever para o presente recebido, porém com as letras firmes do pai. A resposta veio imediata, porém com a doçura das palavras plantadas pela mãe. Ela entendeu o recado. Sorriu e agradeceu. Existem lições que só as mães sabem dar.


É D'Oxum, Rita Ribeiro.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Despertar

Não mais lembrava-se daquela sensação. O rotina já havia pasteurizado certas expectativas e ela, toda cheia de si, julgava-se bem feliz no seu mundo em tons pasteis, apesar da pouca idade. O estranho disso tudo é que a tranquilidade dos solitário não combinava em nada com seu sorriso largo e brilho nos olhos.

Talvez a moça só aprendera, nesse tempo, a receber pacientemente o melhor que a vida lhe dava diariamente a conta-gotas. Esse era o seu mistério, o seu devaneio: ser um flaneur de algo que ela nem sabia que esperava.

Naquela noite ela ainda nem sabia da existência dele, nem ele a dela. Era aquele papo de ser o amigo do amigo que na última hora resolve acompanhar o pessoal no “esquenta” de sexta-feira. Quando ela reparou, o “pessoal” se resumia aos três colegas recém-apresentados. Descontraída, disfarçando a sua timidez natural, entrou no táxi e rumou para o lugar. No bar encontrou outros conhecidos e todos juntos sentaram-se, beberam, cantaram e contaram histórias. Cada qual com as suas e ao mesmo tempo todas caminhando em paralelo.

Ela não sabe ao certo em que momento os sentidos começaram a se cruzar. Só sabia que sentia vontade de estar por perto, que gostava da camisa dele, da barba, do jeito despojado de fumar, do sotaque, do cheiro e sentiu formiguinhas ao dividir o seu brigadeiro com ele.

De lá foram para outro lugar. No novo ambiente, as sensações ainda se dissipavam, mas se espreitavam de longe. Até que em determinado momento, elas bateram de frente e se misturaram de um jeito tão pleno que viraram uma. Caminharam em uníssono de mãos dadas pelas ruas velhas da cidade que já recebia a alvorada.

Sorrateiras as sensações fingiram separar-se na despedida. Muito mais espertas do que os dois, simplesmente clonaram-se. Dormiram e acordaram juntas e não se dividiram mais.

Eles ainda não sabem. Vão cada qual para sua casa, achando que controlam os passos da alma. Mas foi nessa manhã que elas, com aquele sorriso matreiro no canto da boca, sussurraram em meus ouvidos: somos uma. O dia nasceu diferente, mas ninguém ainda sabe por quê.



Dia Branco – Geraldo Azevedo

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Balaio, bodega e amor

- Oh, nega do balaio grande...
Esse foi o chamado provocador que ele fez , mas não cantou de qualquer jeito. Cantou olhando na bolinha do olho dela. Na frente do coro uma dezena de moças, todas bonitas e faceiras, sacudiam o pandeiro. Ela estava bem atrás, só balançando. Hipnotizada ouviu o chamado e saiu feito miss. Abriu espaço, segurou a saia, dançou balançado os cabelos e depois devolveu o olhar com malícia redobrada.

Saiu da roda e deixou as outras sambarem. O cabaré estava cheio, parecia que ia faltar trabalho. Resolveu fumar um cigarro e pensar na vida. Seu homem ia longe dali, vivendo vida de mascate trabalhador. Talvez pela senhorita distinta que ela aparentava durante o dia, ele pensava em casamento. Mas o cabaré, assim como o matrimônio, era a sua vida. Não tinha como dissociar, esse conjunto era o que dava conta dela.

Decidiu não trabalhar naquela noite. Deixou para as moça menos abastadas. Pegou seu xale e saiu a caminhar pela rua. Abriu um sorriso pensando no “tamanho do seu balaio” e decidiu parar no botequim pra beber como uma terceira mulher: aquela que simplesmente bebe, ri e canta. Colocou uma moeda na máquina e pegou o microfone: “se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim”. Começou assim, arrancando aplausos dos velhos bêbados do lugar.

Tomou um gole de conhaque e apostou em outra ficha, exatamente, quando ele entrou. Não lhe deu atenção até ele encher seu copo e pedir ao pé do ouvido: Onde anda você. Ela deu um meio sorriso, levantou sem dizer uma palavra e com o olhar de “nega do balaio grande” cantou no meio do bar, mas só pra ele.

Ele, por sua vez, em nada se parecia com o malandro que batucava no cabaré, muito menos com o mascate trabalhador que enchia de bons costumes os seus dias. Um jovem italianinho desleixado com cara de dono de bodega, assim ele era. Conhecia cada freguês daquelas paradas e chamava todos os homens, mulheres e crianças da vizinhança pelo nome. Os seus dias se dividiam entre o trabalho no botequim e a várzea. O seu coração ainda fazia morada na casa da doninha de respeito que ele havia desposado tempos atrás. Ela, tão recatada era, que não saciava os gostos e muito menos competia com o ganha-pão do esposo. Para ser feliz, a pequena resolveu voltar para casa da mãe e esperar que algum centrado advogado resolvesse cortejá-la. Assim foi que o italianinho se viu sozinho na vida, mesmo tendo em sua cama uma dama a cada noite.

Ela não sabia de nada disso, assim como ele também não sabia de onde ela vinha. Acabou a canção e , como há muitos anos, surgiu em seu rosto um sorriso que não era desafiador. Era tímido e delicado. Era uma mistura de tudo. Era a sua verdade. Encostou no balcão, ele aplaudiu baixinho, bem perto dela. Olhou-a com uns olhos diferentes e agradeceu. Hipnotizado disse, enquanto ela balbuciava centenas de palavras desconexas: “você é linda”. Ela se calou e sorriu.

Uma jovem que vinha da labuta noturna resolveu entrar. Logo que soube da fama da nega, investiu em algumas fichas e fez um pedido: canta a Noite do Meu Bem? Lá foi a moça. Colocou-se a postos e cantou de olhos fechados. Quando abriu não avistou mais ninguém, só o italianinho, que não sorria, tinha o ar daqueles que chegam para levar sua mulher embora. Segurou na sua cintura com firmeza e beijou seus lábios de leve: você é linda, linda. Você é minha. Fechou a bodega.

Criou-se um mundo naquele 3 x 4. A ternura foi se transformando em desejo. A moça cantante foi dando lugar à dona do balaio grande. Nas mesas do bar, no balcão, no chão, o italianinho teve a melhor foda da sua vida. Ela, por sua vez, teve o melhor amor do mundo. No dia que nascia ouviram ao fundo: “Quem vem lá? Que horas são? Isso não são horas coração”. Dormiram agarrados em algum canto. Acordaram antes do mundo, selaram um beijo único.

Os dois ainda vivem nas noites e nos dias que amanhecem, cada qual na imaginação do outro. Ele continua a abrir e fechar a bodega diariamente, dormindo a cada noite com uma dona diferente. Ela passa os dias como a senhorita do mascate trabalhador e as noites virando a cabeça dos homens no cabaré. Esqueceu o caminho da bodega, ambos têm medo de encontrar a terceira dona, aquela que mistura tudo. Aquela que tem os olhos, voz, lábios, cheiro e sorrisos da sua vontade.


A Noite do Meu Bem, Dolores Duran.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Baile do ponto cheio

O amor vestiu uma capa no ponto de ônibus e pôs-se a desfilar de rosto colado pela calçada. Em tom sobre tom. Em dedos que se remexiam delicadamente para acarinhar.

Ela maior, ele menor. Ele frágil, ela forte. Dois corpos tão disformes, tão perfeitos. O baile no ponto cheio. O salão de asfalto e suor.

A beleza apreendida por olhos distraídos. A felicidade singela. O recorte que fez brilhar a noite.


Coisa mais bonita, Toquinho

Para o homem da biblioteca

Tirou os sapatos, as meias eram finas e azuis. O solado parecia gasto e a estatura da sua ossada era mediana. Calça jeans, camisa branca, calvice acentuada, testa franzida.

Deliciava-se com o livro como na sua melhor poltrona. Talvez estivesse.
A mesa da biblioteca, o seu reinado.
O meu olhar, apenas um flâneur de Baudelaire a espreitar sua condição.


Sudoeste - Adriana Calcanhoto.

Suspensa

Não conseguiu chorar, pois julgou descabida aquela culpa. De outras feitas ela carregou a marca do erro. Dessa vez ela só trouxe consigo o hiato que se formou diante da reação.

Foi embora tremendo, reflexo de sentimentos que não se explicavam. Andou pela rua suspensa em si. Indagou-se se fizera bem. Condenou-se por tanta sinceridade. Lembrou da voz ouvida naquela tarde e de como seu peito se encheu de felicidade só em pensar nas possibilidades. A primeira frase inundou seu coração: “amo você...”, o que veio depois das reticências dilacerou.

Fez uma parada no caminho e olhou para o nada. Iemanjá afagou seus cabelos, sussurrando que fizera o certo. Oxossi a sacudiu: estava orgulhoso dela.


Senhora Liberdade (Wilson Moreira / Nei Lopes) - Zezé Motta.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Walk

Depois de passar o dia todo trabalhando sem descanso, sem almoço, sem amenidades, resolve colocar a Jill Scott para cantar no fone. Mesmo com a mesa repleta de coisas e ainda faltando 15 minutos para o fim do expediente, a moça sai andando pelos pensamentos. Liga o botãozinho do foda-se e dança sentada em seu lugar. Viagem merecida. Não sentia perfumes conhecidos. Perdia-se em nuvens misteriosas. O que estaria por vir em seu caminho? Sonhava em meio ao cansaço do fim do primeiro turno. Desejou andar. Desejou dissipar a neblina. Desejou sorrisos empolgados. Encantamento sincero. Embriaguez impensada. Desejou avidamente os dias vindouros.


You Got Me - Erykah Badu & The Roots live Woodstock 99

terça-feira, 6 de abril de 2010

Devoção


- Mamãe por que você está triste?
- Nada filha, vai lá ver qual é o desenho que está passando na tv.
A filha sai e volta depois de 2 minutos.
- Mamãe por que você está chorando?
- Nada filhinha.
- Mamãe você não vai me contar por que está triste?
- Depois a mamãe te conta.
Passam mais 2 minutos.
- Mamãe você não vai me contar?
- Vamos olhar os livros? Quer que eu te conte uma história? – a mãe responde enxugando o rosto.
A filha, muito pertinente no alto dos seus quase cinco anos, pondera:
- Mamãe deixa eu te falar. Você tem que me contar o que aconteceu. Eu sou a sua filha, lembra? Nós somos amigas.
A mãe larga um sorriso e a essa altura já nem quer mais saber de tristeza. Tudo ficou menor. Coloca a pequena no colo e lhe conta os seus motivos pincelados de beleza, afinal até as tristezas ficam coloridas diante de tamanha devoção.

terça-feira, 30 de março de 2010

Lugares por aí

A moça saiu de circulação já fazia uns seis meses. Plantou uma vida nova. Livrou-se do que julgava errado, aparou as arestas do passado. Contou seus segredos mais íntimos a fim de conquistar a rendição daquele que julgava amar. Enfim, traçou um destino diferente durante esse tempo de retiro. Quando escolheu o caminho mais difícil o fez com a ingenuidade dos puros. Pensou de fato que as demonstrações de sinceridade lhe renderiam sorrisos, não totalmente abertos, levemente fechados em função do ciúme, mas aquele velho sorriso preso no canto da boca, como que dizendo: “Era isso que eu queria de você”.

Esperava mão na mão e vida nova, regada à felicidade, família, companhia e tudo mais que vinha da parceria tão perfeita dos dois. Não foi assim. O tiro acertou o seu próprio peito e o sangue escorreu. Vieram ofensas e todo tipo de desaforos. Primeiro seu rosto empalideceu. Não entendeu nada, pra ela aquilo lhe parecia tremendamente injusto. Ficou muito tempo sem entender. Lastimou-se. Chorou. Insistiu em cartas surdas. Telefonemas suplicantes. Mas de pouco valeu.

Até que um dia, quando os seus minutos não transcorriam bem e sentia-se desamparada, tentou certo afago. Ganhou resposta áspera e inédita, porém verdadeira. Chorou em silêncio no meio do expediente, mas entendeu. Cansada dos boleros e baladas tristes, colocou um samba para tocar. Mas os seus preferidos nunca foram tão felizes assim. Amiga do Lado B bebeu seu salão vazio. Imaginou par. Uma frase trouxe a redenção: “Sambando para não viver em vão”. Tão triste, tão pequena, tão simples que se tornava bela. Sorriu daquele seu jeito. Imaginou que seus cabelos e sorrisos estivessem fazendo falta em algum lugar por aí. Notou que os lugares por aí andavam fazendo muita falta por aqui. Seu rosto desanuviou.


Tudo que vivi, Wilson das Neves.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Lembranças

Chegou em casa como de costume. Entrou e recebeu, surpresa, um abraço que sua pele reconheceria a distância. Poderiam passar todos os anos da sua vida, que ela seria capaz de voltar para casa.

Ela sabia que essa certeza rendia ciúme em todos os pares que já passaram em sua vida, mas naquele momento seu coração era tomado de outro sentimento, que ia longe da paixão. O encontro era só o bom aconchego daqueles que são cúmplices. Comentou o fato dos anos o tornarem parecido com o pai. Ele riu e a olhou de um jeito diferente dizendo que tinha certeza que ela diria aquilo.

O jantar já estava quase na mesa. Correu para o banho. Se livrou do peso do dia. Sentou-se, conversou animadamente. Abriu a primeira latinha e encerrou quase na décima. Deixou de pensar em qualquer coisa insossa. Aproveitou a felicidade das pessoas que amava.

Brincou com a pequenina. Ninou-a nos braços, como nos tempos de bebê. Colocou-a na cama. Ainda conversou um pouco com todos e depois resolveu ir pra cama. O dia havia sido demais para os seus ombros e o cansaço já refletia.

Deitou, percebendo que o dono dos seus olhos adolescentes ainda estava acordado, sentado, fingindo ver tv. Em outros tempos esse seria o sinal para que ela se chegasse. Deitaria no seu peito e vagaria pela noite em pensamentos desconexos. Mas os anos haviam passado e a adolescência ficou pra traz. A vida lhe deu novos planetas e ela já se sentia confortável neles. Achou que não fazia sentido aquele encontro. Adormeceu se sentindo mudada.


Poesia de nós dois, Fundo de Quintal