quinta-feira, 24 de março de 2011

Gaivota

A tarde começava a cair. Não havia belo pôr-do-sol ou qualquer coisa iluminadamente feliz. Havia inúmeros pássaros voando, sincronizadamente, em bandos a emitir seus sons que quebravam o silêncio da solidão.

Havia mar, havia montanha, havia o verde, havia uma paz melancólica. Ela viajava no seu mundo. Pensava em asa-deltas, imaginava que aqueles pássaros foram a inspiração do homem para alçar vôo alto.

Gostaria de voar alto. Gostaria de fugir dos impropérios, da falta de cortesia, das palavras que humilham. Gostaria de fazer diferente. Voltou os seus olhos para o mar e percebeu o movimento das ondas, que sempre voltam diferentes. Fitou a mata e notou que, em cada árvore, brotava sempre um pequenino ponto novo.

Percebeu, nesse devaneio, que ela era parte da natureza. Entendeu que sempre é possível voltar diferente. Parou de pensar no que gostaria e fez o que de fato queria. Tomou as rédeas. Traçou seu rumo. Soprou vento. Alterou sua maré. Lançou novas sementes, pois sabia que na hora certa elas lhe trariam outras cores. E foi assim, de um jeito que só ela sabe sentir, que entrou dentro daquela noite sem estrelas.


Choro Negro (Paulinho da Viola) - André Mehmari & Hamilton de Holanda

Seguro

Já era dia seguinte. Ela acordou diferente, como andava diferente essa moça nos últimos dias. Olhou para o calendário. O coração apertou-se de saudade. Era um tempão para sua urgência de viver. Calculou, calculou. Fez o relógio enlouquecer e a vida dar um nó. Espremeu possibilidades. Encontrou a perfeita. Mas não havia o perfeito, pois não havia o recíproco. Não havia par. Era vontade única. Era a sua mente, os seus sentidos e o seu coração que se agitavam sozinhos em uníssono, em uma canção somente sua.

Olhou para a janela, a tarde já caia. Sentiu uma imensa saudade do que não viveu. Recolheu, sozinha, os seus sorrisos soltos que andavam passeando a esmo. Recompôs a sua órbita serena. Inseriu o seu planeta no velho ciclo. Fez isso, mesmo enquanto todo o resto do seu interior implorava para fugir no último bondinho, rumo ao pôr-do-sol, ansioso por ver o céu alaranjado e os pássaros brincando em bando próximos à montanha. Fez isso, mesmo quando todos os seus sentidos suplicavam pelo silêncio em dueto, quando seus poros pediam aquela mesma metade que adormeceu no seu ombro, enquanto ela acarinhava e velava seu sono, no meio de uma multidão.

Fez isso sem saber o certo. Fez isso sabendo o seguro.


O último pôr-do-sol - Lenine

quinta-feira, 17 de março de 2011

Fogo de Rei. Majestade de Rainha

O tempo soprava ventania, maquiava tempestade. Oxum, astuta, vestiu-se de cobre, misturou suas jóias e saiu como sua irmã. Na noite que despontava, havia festa, beleza, havia guerra de paz, havia deboche, havia sensualidade. Inhasã, apesar das desavenças com Oxum, gostou do que viu e resolveu brincar de brisa. Saíram ambas, ladeira abaixo a zombar dos olhares que não as reconheciam em um corpo só.

Misturadas traziam o melhor de cada uma: a ousadia do vento, que não pede permissão e invade todos os espaços, e a sensualidade da cachoeira reluzente, que acaricia e enfeitiça os que se deitam sob ela.

Atraindo olhares, passeavam por todos os deuses pagãos que se divertiam na festa junto aos mortais, mas ninguém as reconhecia. Elas, por sua vez, apenas sorriam de um jeito meio menina, meio mulher. Foi aí que cruzaram com três homens. Um dos mortais as parou, pensando ser uma única, elas lhe sorriram e conversaram como uma mulher qualquer, porém entre eles havia um rei. O único que já desposara as duas, aquele que perdia a cabeça por ambas e, também, o único que as dominava com sua firmeza.

Sem pedir licença, ignorando o pobre mortal, o rei lançou-lhes as palavras certas. Exalou o seu cheiro, o seu poder. A força do seu fogo que leva para o seu reino tudo o que ele deseja, que transforma, em sua, toda mulher que ele escolhe.

Quando ele tirou-lhes a máscara de cobre e sentiu o gosto das duas, fez com que elas, naquele exato momento, se fundissem pra sempre. Não era mais Oxum, não era mais Inhasã, era Opará, uma terceira deusa, nascendo para o seu Xangô, o seu rei soberano. Surgiu ali uma jovem majestosa que, de mãos dadas com o fogo, saiu a rir de um jeito só dela, exibindo sua fresca beleza misturada aos mortais.

Sem que o mundo notasse, a chama de Xangô se acendeu e lançou na festa o seu fogo, o fogo que jamais finda. Opará, sendo meio vento, meio água, apagava e tornava a acender tudo o que mais amava em seu rei.

Foi em meio a essas brasas que os dois sumiram na multidão. Nunca mais foram vistos, mas são sentidos toda vez que corpos ardem em um desejo que jamais sucumbe. É assim que Opará e Xangô vivem nessa terra de mistérios. Foi assim que eles se eternizaram.


Oxum Opará

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ele

Um jeito só dele de prender o cabelo,
aquele cabelo que hipnotiza,
que se mistura ao seu sorriso largo,
que completa seu jeito despojado e blasé,
um blasé só seu,
um blasé que contradiz o dicionário,
negro, lindo, altivo, contemplativo, simpático.

Sua diversão observando o todo,
a perspicácia que me faz rir,
um jeito discreto de me beijar na multidão.
A fome que suporta até miojo salgado.
A gentileza a me dizer, a cada volta, que estou mais linda.

Um jeito solto de contar seus pormenores,
detalhes tão diminutos a desvendá-lo a conta-gotas.
Seu silêncio momentâneo.
Seu silêncio a convidar o meu.

O seu olhar que olha à mar,
sua vida que vive à mar,
sua alma livre que cheira à mar.

A delicadeza sussurrante, só dele, a sugerir o indelicado.
O sorriso malicioso, só meu, a responder o natural.

O cheiro que ainda sinto,
o gosto que ainda desejo,
o sorriso espontâneo que os meus sentidos trazem...
“Prazer, eu sou a sua melhor lembrança da PRAÇA SECA”.


Jah Work - Ben Harpen